15 de outubro de 2008

420. Istambul

«A cidade toma por vezes outro rosto. As cores vivas das ruas que no-la tornam familiar apagam-se de repente, e compreendo nesse instante que essa multidão ainda há pouco misteriosa nada mais faz do que caminhar desesperada, desde há séculos pelos passeios. Os parques transformam-se em campos lamacentos e tristes, as praças eriçadas de postes eléctricos e de cartazes publicitários, cobrem-se de blocos de betão anónimos e a cidade, como a minha alma, torna-se um espaço vazio, desesperadamente vazio. A insalubridade das ruelas e o cheiro nauseabundo dos caixotes do lixo abertos, os eternos buracos nos passeios, as subidas, as descidas, a desordem, a confusão, a algazarra que fazem com que Istambul seja Istambul, dão-me a sensação de que há qualquer coisa de insuficiente, de malévolo, de incompleto na minha alma e na minha vida, mais do que na cidade. É como se Istambul se tornasse o destino que mereço. Ao mesmo tempo, sou um elemento que a polui. Enquanto a sua tristeza influencia delicadamente a minha pessoa, e vice-versa, compreendo que passou a validade de ambos, a minha e a da cidade: tal como ela, estou morto, sou um cadáver que ainda respira, um miserável condenado à derrota e à sujidade - é assim que as ruas me fazem sentir. Nesses momentos, até a vista do Bósforo, tremelicando como um lenço por entre os prédios de betão, recentes e feios, cujo peso me esmaga a alma, não pode dar-me qualquer esperança. Então sinto que o pior está para acontecer, que o verdadeiro sentimento de tristeza, insuportável e destrutivo emanando das ruas longínquas e invisíveis de Istambul, se aproxima de mim. Apresso-me então, a exemplo de qualquer istambulense experiente que detecta, pelo simples cheiro das algas e do mar que paira progressivamente na cidade, a aproximação de uma tempestade trazida pelo vento sul, a voltar para casa o mais rapidamente possível, como todos aqueles que preferem estar no sossego do lar durante um cataclismo, uma hecatombe, um tremor de terra, ou uma tempestade de vento sul.»

Orhan Pamuk in Istambul - Memórias de Uma Cidade, 2003

1 comentário:

Anónimo disse...

então, recomendas o título em questão?
A2