«De súbito ao cair de mais um ano
sou por instantes sinto-me ao cair da tarde
do sol que antes brilhante é luz lustrosa
e pegajosa agora à superfície da calçada
na humilhante morte de quem era alto eterno e dominante
sou ao cair da tarde de um ano que cai
eu o poeta o instalado o mais que muito aburguesado
um colectivo passageiro num eléctrico
mas só supostamente anónimo ou popular ou colectivo
pois posso dar-me ao luxo de evocar um livro lido há muito
num destes animais metálicos já hoje arcaicos deslocados
e amanhã vivos apenas nesse livro do zé gomes que os evoca
e eu me posso dar ao luxo de evocar após haver falado
nessa farmácia onde comprei há pouco antiasmático
do cão asmático das praias que primeiro ouvi tossir
num verso do o’neill e só depois num mês de maio em espinho
ao imprimir na areia graves passos de poeta nupcial
sinto-me alguém de súbito ao pagar o meu bilhete
bilhete de quem volta e de quem vive do trabalho
mas que pode exibir o seu sapato alto à moda
e alinhar uns versos no papel da embalagem do remédio
E eu que distraído e que perdido e que privado já
de mais alguma face da embalagem do remédio onde escrevia
eu que já não sabia como pôr ponto final
em toda esta conversa mais do que fiada
dizer ao ver que continuo alheio lírico e sentado
oiço a voz grossa e neutra do sisudo guarda-freio
que chegámos ao fim fim da viagem para ele
e fim deste poema para mim»
Ruy Belo.
2 de janeiro de 2010
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